Dor abdominal, distensão, gases, refluxo, náuseas e vômitos, além de diarreia estão entre os sintomas mais relatados em pacientes portadores de sensibilidade ao glúten não-celíaca (SGNC). Mas uma série de sintomas extra gastrintestinais, como dores de cabeça, cansaço, dificuldades para concentração, confusão mental, fibromialgia, mal-estar inexplicado, reações inflamatórias na pele, dores musculares, dores articulares, anemia e mesmo depressão podem estar relacionadas a essa condição.
Em 1978, uma publicação na revista Lancet (Ellis, A e Linaker, BD – Lancet, 1978, Jun 24;1(8078):1358-9), relatou o caso de uma paciente que apresentava sintomas sugestivas de doença celíaca, sem que apresentasse evidências laboratoriais que corroborassem o diagnóstico. Apesar disso, uma dieta isenta de glúten levou ao desaparecimento de todos os sintomas, indicando a existência de uma entidade que passou a ser conhecida como sensibilidade ao glúten não-celíaca. Poucas publicações sucederam o relato de Ellis e Linaker, até que em 2012, uma publicação na BMC Medicine (Sapone, A et cols. BMC Med 2012, Feb 7; 10:13) voltou a tratar desse assunto, despertando a comunidade científica para essa desordem.
Diferentemente da Doença Celíaca, que apresenta marcadores genéticos, imunológicos e anatomopatológicos bem estabelecidos, a SGNC não possui testes específicos que permitam seu diagnóstico definitivo. Assim, a sua ocorrência não é bem estabelecida, mas acredita-se que sua prevalência seja de 0,49 a 14,9% na população geral. Significa que em Piracicaba, que tem 423.323 habitantes, segundo o último Censo do IBGE (2022), de 1.500 a pouco mais de 47 mil adultos podem apresentar diferentes espectros dessa condição. Esses números são meramente especulativos, pois ainda não existem instrumentos bem validados para definir essa condição, além de questionários populacionais que consideram autodiagnósticos dessa entidade.
A Doença Celíaca apresenta uma prevalência de 0,5 a 1% da população geral e também vem aumentando nos últimos anos, já movimentando um grande volume de produtos gluten-free mundialmente. Em 2010 os produtos gluten-free movimentavam 2,5 bilhões de dólares, mas o incremento no número de portadores de SGNC vem aquecendo o mercado mundial. A necessidade de utilizar ingredientes adicionais, como a inulina, chicória, gomas xantana e guar, além de outros, aumenta substancialmente o custo de produção, tornando os produtos isentos de glúten ainda cerca de 26% mais elevados.
A Doença Celíaca é fortemente associada a marcadores genéticos, como o HLA classe II (Antígeno Leucocitário Humano), que são proteínas localizadas na superfície de praticamente todas as células do corpo humano. Em 95% dos casos de Doença Celíaca, são detectáveis os HDA-DQ2 e HLA-DQ8. Na SGNC em menos de 53% das pessoas acometidas essa característica genética está presente. Da mesma forma, alterações comumente observadas na doença celíaca, como a elevação de anticorpos anti-gliadina e anti-transglutaminase estão ausentes na SGNC. Também não é possível observar alterações da mucosa intestinal, como é comumente observada na Doença Celíaca. Desta forma, os exames utilizados para diagnosticar Doença Celíaca são inúteis para o diagnóstico de SGNC, sendo realizados para sua exclusão.
Ainda não há um consenso sobre a fisiopatologia da SGNC. Evidências experimentais sugerem que há o envolvimento do sistema imunológico inato, com alterações de algumas proteínas responsáveis pela integridade das junções celulares no intestino, sem produzir lesões específicas. Vários estudos mostram alterações ainda inconclusivas, mas caminham para demonstrar uma associação de fatores relacionadas a outras substâncias além do glúten, como o inibidor de amilase-tripsina (ATI – proteínas altamente resistentes à proteases gastrintestinais, encontrada no endosperma de sementes de plantas, atuando como um pesticida natural) e FODMAPS (fermentable oligo-,di- e mono-saccharides e polyols, na língua inglesa), além de modificações do microbioma intestinal.
Na Doença Celíaca, o sistema imunológico adaptativo está envolvido e a permeabilidade das junções celulares está comprometida, assim como são evidentes alterações inflamatórias, que não estão presentes na SGNC.
Atualmente o diagnóstico é feito pela exclusão da Doença Celíaca e da alergia ao glúten e com a realização de um teste terapêutico que consiste na exclusão do total do glúten na alimentação por pelo menos seis semanas. A melhora dos sintomas é indicativa do diagnóstico de SGNC, embora o efeito Nocebo (quando uma pessoa desenvolve sintomas e efeitos colaterais de uma doença ou de um medicamento, simplesmente porque leu ou foi alertado sobre tal possibilidade) possa superestimar o diagnóstico.
Quadro demonstrando as diferenças de diagnóstico de doenças relacionadas ao glúten
Características |
Sensibilidade ao glúten Não-Celíaca |
Doença Celíaca |
Alergia ao Trigo |
Gatilho |
Glúten, ATI, FODMAPs |
Glúten |
Proteínas do trigo |
Patogênese |
Predomínio do sistema imunológico inato |
Anto-imune |
Reação alérgica mediada por IgE |
HLA-DQ2 / DQ8 |
Presente em 50% |
Presente em >95% |
Ausente |
Marcadores laboratoriais |
Não há |
IgA EMA, IgA tTG, IgG DGP |
IgE contra proteínas do trigo |
Histologia |
Marsh 0 a I |
Marsh I a IV |
Normal |
Sintomas |
Intestinais e extra intestinais |
Intestinais e extra intestinais |
Intestinais e extra intestinais |
Início dos sintomas |
Horas a dias |
Dias e semanas |
Minutos a horas |
Intensidade dos sintomas |
Moderada |
Leve ou Grave |
Leve ou Grave |
Complicações |
Desconhecida |
Complicações a longo prazo |
Anafilaxia |
Diagnóstico |
Por exclusão |
HLA, anticorpos e biópsia |
IgE contra trigo, testes cutâneos e teste terapêutico |
Como é possível observar, a Sensibilidade ao Glúten Não-Celíaca é uma doença conhecida há menos de um século, ainda com muitas incógnitas a serem desvendadas nos próximos anos cujo único tratamento é deixar de ingerir alimentos feitos com farinha de trigo, ou que contenham glúten, além de alguns alimentos fermentativos. O tratamento é multidisciplinar, com a participação médica, da nutrição e da psicologia. Se o leitor(a) suspeitar desse diagnóstico, busque atendimento especializado.
Cárdenas-Torres FI, Cabrera-Chávez F, Figueroa-Salcido OG, Ontiveros N. Non-Celiac Gluten Sensitivity: An Update. Medicina (Kaunas). 2021 May 24;57(6):526. doi: 10.3390/medicina57060526. PMID: 34073654; PMCID: PMC8224613.
Sapone A, Bai JC, Ciacci C, Doli nsek J, Green PH, Hadjivassiliou M, Kaukinen K, Rostami K, Sanders DS, Schumann M, Ullrich R, Villalta D, Volta U, Catassi C, Fasano A. Spectrum of gluten related disorders: consensus on new nomenclature and classification. BMC Med. 2012 Feb 7;10:13. doi: 10.1186/1741-7015-10-13. PMID: 22313950; PMCID: PMC3292448.
Barbaro MR, Cremon C, Stanghellini V, Barbara G. Recent advances in understanding non celiac gluten sensitivity. F1000Res. 2018 Oct 11;7:F1000 Faculty Rev 1631. doi: 10.12688/f1000research.15849 .1. PMID: 30363819; PMCID: PMC6182669
Dr. Miki Mochizuki, CRM 88.150, médico cirurgião do aparelho digestivo, mestre em cirurgia pela Unicamp, Titular Especialista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (TCBC) e do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva (TCBCD), professor de cirurgia da UAM – Piracicaba, médico cooperado da Unimed Piracicaba, com passagem pela NCC – Tóquio e pela Universidade de Quioto, Japão. Integra o corpo clínico da Clínica GastroCentro Piracicaba – www.gastrocentropiracicaba.com.br
Cirurgia do Aparelho Digestivo e Coloproctologia | Cirurgia de Obesidade e Cirurgia Oncológica
Médico Responsável Técnico: Dr. Juliano Borges Barra - CRM 97558